Pular para o conteúdo principal

BACURAU E A VIDA NUA

 Em Agambem, de certa forma, a filosofia da vida é esquadrinhada como uma filosofia que vem. A vida é dada a partir de um projeto político. Há conceitos que envolvem a vida para além dos aspectos biológicos,  o que se considerar o político, como dito, e o teológico. Para o pensador italiano, “a vida nua a que o homem foi reduzido, não exige, nem se adapta a nada: ela própria é a única norma, é absolutamente imante”. Nela, concretiza-se um jogo de produção humana através da oposição homem/animal, eis o que elucida o mecanismo de captura da vida nua pelo biopoder. Nesta perspectiva é operado sobre o ser humano um jogo de exclusão e inclusão. Isolado da vida nua, o ser humano é apenas atual, deixa de vivenciar uma perspectiva virtual, perde sua potência de vir-a-ser, ele apenas é. Aquilo que uma vida pode ser, deixa de existir.

Ontem participei de um evento acadêmico, onde assistimos e discutimos Bacurau. Calei-me no debate. Habitava um sentimento difuso, semelhante ao que senti ao sair da seção do Coringa. Enumerei os protagonistas do filme. Não encontrei uma história central, como também não encontrei o centro da vila Bacurau, aquilo que o ser humano é, pode vir a ser, na experiência da comunidade. Não havia instituição centralizadora, a comunidade não era os partícipes da igreja ou da escola, a comunidade era o todo. Havia uma vida nua, que em Bacurau estava/estará absolutamente imanente. Os nativos, diante da aniquilação da vida, capturada por uma estratégia de biopoder, vivenciaram uma perspectiva virtual ao negar o Estado. A pertinencialidade do vir-a-ser não estava na individualização do sujeito, mas na comunidade. O protogonista é Bacurau. Ele se forma na soma dos entes que compõe um território.

Bacurau não é um filme geográfico. É anarquista, no sentido estrito da palavra. É um filme sobre território, no sentido, deleuzo-guattariano. É um território, que por acaso está no Oeste de Pernambuco, mas poderia estar a leste do Rio Grande do Sul… O território é controlado por estratégias de biopoder que domesticam corpos com normativas políticas. A resistência passa pela escola, que foi/é desterritorializada do poder estatual, subverte a função do museu que olha para o futuro e desnaturaliza a privacidade do sexo. É outra-vida, é aquela que permanece diante do caos estático da morte.

Obras referenciadas

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2022.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

Filme comentado

Bacurau (Adoro Cinema) 


Texto escrito em 2019

Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto
https://orcid.org/0000-0001-8631-527



 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ZUCKERBERG INAUGURA NOVA FASE DA PÓS-VERDADE?

  Imagem gerada por Artificial Intelligence. Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto https://orcid.org/0000-0001-8631-5270 Massaranduba, 15 de janeiro de 2025 Você já ouviu falar, ou, já leu algo sobre o conceito de pós-verdade? Para D’Ancona (2018) a ideia de pós-verdade sugere uma crise na comunicação e no debate político. Um tempo em que a “verdade” é moldada por interesses de grupos políticos, econômicos ou sociais que constroem narrativas próprias.  Grupos que em vez de fundamentar-se em fatos verificáveis pautam-se em discursos de interesses. Essa dinâmica tem implicações significativas para a democracia, enfraquecer a confiança nas instituições e o entendimento público em questões complexas. A desinformação na pandemia, por exemplo, causa problemas até hoje! Há de se considerar que a construção histórica de narrativas atendeu a interesses conforma objetivos de controle sobre uma determinada população (Foucault, 2009). Esse processo de construção de narrativas é observado ...

BOLSONARO E A CORROSÃO DA MORAL: UM PARALELO COM "É ISTO UM HOMEM?"

  O relatório da Polícia Federal, divulgado dia 27 de novembro de 2024, expõe um conjunto de ações orquestradas por ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados visando subverter o regime democrático brasileiro. As evidências apontam para a disseminação de desinformação sobre a integridade do sistema eleitoral, a articulação de planos para impedir a posse do presidente legitimamente eleito e até mesmo a intenção de neutralizar figuras-chave do Judiciário, como o Ministro Alexandre de Moraes. Tal cenário encontra paralelo com a realidade brutal retratada por Primo Levi (1988) em "É Isto um Homem?", onde a aniquilação da moral se torna um instrumento de controle e perpetuação do poder. Um golpe de estado, em qualquer situação, é o aniquilamento da moral. Levi (1988) apresenta testemunho cru da desumanização perpetrada nos campos de concentração nazistas, serve como alerta para os perigos da corrosão moral e do fascismo, e aqui entendido como oposição à democracia. No un...

JORGINHO MELLO PROTEGE OS RICOS E SOBRECARREGA OS POBRES

O governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), anunciou que não implementará a cobrança de IPVA para embarcações e aeronaves no estado até que uma Lei Complementar Federal regule o tema. A justificativa? Supostamente, garantir “clareza e segurança jurídica” e apoiar os setores náutico e aéreo. No entanto, essa decisão escancara o abismo social que cresce a cada dia em Santa Catarina. Barcos e aviões são bens de alto valor que pertencem, em sua maioria, a uma parcela muito pequena e abastada da população. Enquanto isso, os trabalhadores comuns são obrigados a pagar IPVA por seus carros, motos e caminhões, usados para trabalhar e garantir seu sustento. Para piorar, Santa Catarina apresenta um crescimento significativo no número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Dados recentes do IBGE apontam que o estado, antes considerado referência em qualidade de vida, registrou um aumento de 15% no número de pessoas vivendo em favelas nos últimos anos. Entre 2020 e 2023, o núme...