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QUAIS SÃO AS SINGULARIDADES QUE EXISTEM NUMA COMUNIDADE?

Região da Velha Grande também compõe a lista de favelas
(Foto: Patrick Rodrigues, NSC Total, Arquivo)



 A ideia de comunidade atravessa as estruturas sociais de diferentes épocas, mas a sua compreensão histórica revela transformações significativas que refletem a lógica das relações de poder e os modos de produção econômica. Essas ideias não dizem o mesmo. Por exemplo, para Rocha (2013), no século XIX as comunidades foram concebidas como formas administrativas, criadas pelo Estado para estruturar e orientar o desenvolvimento de uma porção específica de um território. Tratava-se de uma delimitação geográfica, onde a ideia de pertencimento se dava pela localização física e pela funcionalidade desse espaço no processo de organização imposto pelo Estado. O sentido da comunidade, portanto, era instrumental, imposto por uma visão governamental que buscava ordenamento e eficiência.  

Com o advento da modernidade e o avanço do capitalismo, a comunidade é ressignificada. Como nos alerta o filósofo Antônio Négri (Trindade, 2015), a realidade urbana contemporânea coloca em evidência os espaços marginalizados — as favelas, os morros e as periferias — que se constituem como formas forjadas à margem do regime capitalista. Diferentemente da ideia do século XIX a territorialmente circunscrita e integrada ao projeto estatal, esses espaços periféricos desafiam o modelo hegemônico, ao mesmo tempo, em que denunciam suas contradições. São territórios de exclusão, mas também de resistência, construídos por meio de práticas sociais que emergem no vácuo das políticas públicas.  

Mapa com distribuição populacional das favelas em Blumenau

No entanto, o capitalismo mundial impõe, segundo Négri (Tsu, 2000), uma ideia global de reunião, uma homogeneização dos modos de vida que opera na destruição das singularidades locais. Tal produção globalizante é acompanhada por uma produção disciplinar sobre aqueles que compõe a comunidade. Aqui, a ideia de comunidade é esvaziada de seu sentido autêntico de pertencimento e se torna, de certa forma, um não-lugar, uma abstração funcional que reproduz a lógica do capital. Não há mais autodeterminação: o que resta é uma comunidade instrumentalizada, administrada e governada por forças externas que anulam suas particularidades em nome da integração ao sistema.  

Em vez de um espaço de identidade, ou de governaça sobre o território,
ela é a própria margem da sociedade. Não está à margem, mas é a própria margem. Todo o que aí-está, foi sequestrado por uma força alheia a ela mesma. Como dia Pelbart (2003), não há uma vida propriamente comum, mas há um sequestro do capitalismo operando em todas as partes. 

Diante dessa realidade, surge a pergunta: quais são as singularidades que existem numa comunidade? Pensar a resposta a essa questão requer olhar para além das concepções hegemônicas que enquadram a comunidade como mera periferia ou como instrumento funcional ao poder. As singularidades estão nos modos de vida que emergem nesses espaços, na riqueza das relações humanas e na capacidade de produção simbólica e cultural que se dá fora dos limites impostos pela lógica capitalista.  

As comunidades periféricas, as favelas e os morros, longe de serem espaços estéreis, são territórios férteis de criatividade e resistência (Scoz; Melchioretto, 2022). A singularidade se manifesta nos saberes locais, transmitidos pela oralidade e pela convivência cotidiana; nas formas de organização coletiva, que frequentemente surgem como resposta à ausência do Estado; e nas relações de solidariedade que desafiam a individualização imposta pelo neoliberalismo.  

A despeito, a singularidade de uma comunidade é sua capacidade de se reinventar, criando alternativas que resistem à destruição cultural promovida pela globalização. A periferia é mais do que um espaço físico marginal, é também um campo de disputa política e simbólica, onde o próprio conceito de "centro" é contestado. A comunidade não é apenas um espaço físico delimitado, mas uma manifestação das potencialidades humanas que florescem, mesmo sob condições adversas.  

A singularidade de uma comunidade reside na sua potência de criação e resistência. Ao pensar a comunidade a partir de sua marginalidade — sem a reduzir a um objeto de intervenção ou a uma abstração administrada —, conseguimos reconhecer que ela é, ao mesmo tempo, denúncia e alternativa. Denúncia das estruturas de exclusão que a forjaram e alternativa às lógicas uniformizantes que buscam apagá-la. É nesse ponto de tensão que as singularidades se tornam visíveis: nas relações humanas, nos modos de organização e na produção simbólica que escapam à disciplinarização e abrem caminhos para novos horizontes políticos e sociais.


REFERÊNCIAS

PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de bipolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. 

ROCHA, Tatiana Gomes da. Discutindo o conceito de comunidade na psicologia para além da perspectiva identitária. Global Journal of Community Psychologi Practice, Chicago, v. 3, n. 4, p. 6, 2013. 

SCOZ, Emanuella; MELCHIORETTO, Albio Fabian. Resistências técnicas e cognitivas dos artistas periféricos de Blumenau: as modas das periferias e o corpo sem órgãos. Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, v. 16, n. 3, Linguagens de (Re)Existência de corpos perigosos e subversivos: pretos, indígenas e dissidentes na cena das artes, p. 90–106, 2022. 

TRINDADE, Rafael. Negri e Hardt - Império • Razão Inadequada. In: RAZÃO INADEQUADA. 8 jul. 2015. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2015/07/08/negri-e-hardt-imperio/. Acesso em: 25 ago. 2024.

TSU, Victor Aiello. Entrevista com Antonio Negri e Michael Hardt: A nova soberania - 24/09/2000. São Paulo, 2000. Jornal. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2409200003.htm. Acesso em: 25 ago. 2024.


 

Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto

https://orcid.org/0000-0001-8631-527



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