Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto
https://orcid.org/0000-0001-8631-5270
Pretendo, neste texto, apresentar uma análise da obra Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?, de Immanuel Kant (2010), publicada originalmente em 5 de dezembro de 1783. O texto é uma tradução do original em alemão Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?.
Entre os tradutores, há divergências: alguns utilizam o
termo "esclarecimento", enquanto outros optam por
"iluminismo", "ilustração" ou até "filosofia das
luzes". Floriano de Souza Fernandez defende que "esclarecimento"
é o termo mais adequado, pois acentua o aspecto essencial da expressão Aufklärung (cf.
Kant, 2010, p. 100). O termo Aufklärung refere-se a um
processo de emancipação, no qual alguém tutelado busca transcender o estado de
menoridade para alcançar a maioridade. Ao longo do texto, optarei por
"esclarecimento", pois a Aufklärung não se restringe
a uma época específica, como poderia sugerir o termo "iluminismo". O
esclarecimento é uma tarefa constante. Fazendo uma analogia com a Alegoria da
Caverna de Platão, a atitude do esclarecimento é como sair da caverna em busca
da luz (Platão, 2021). O esclarecimento é o "sair", e não a chegada;
não é um fim, mas um modo de ser, uma forma de conduzir a si mesmo como um ser
capaz de raciocinar, especialmente no que diz respeito à vida pública.
Antes de iniciar a análise do texto de Kant, gostaria de
destacar três ideias que merecem atenção. A primeira é que o texto é um apelo
ao exercício autônomo da razão e à liberdade de pensamento. Kant se propõe a
responder à pergunta "o que é esclarecimento?", mas sua resposta não
é simplória ou despretensiosa. Ele busca levar o leitor a refletir sobre as
condições e práticas que elevam o indivíduo da menoridade para a maioridade. A
proposta visa libertar o leitor de condições supérfluas, incentivando uma reflexão
sistemática e orientada que permita uma condição humana esclarecida em seus
atos. Não se trata apenas de um texto de época, mas de uma obra atual.
A segunda ideia é discutida também por Foucault (2000) em
seu texto homônimo, onde ele explora o projeto da modernidade e,
consequentemente, o que alguns chamam de pós-modernidade. O esclarecimento e a
maioridade levam o ser humano à autonomia, e essa é a terceira ideia: um ser
autônomo capaz de se libertar das amarras que o mantêm sujeito à razão e à
autonomia alheia, o que pode, em certa medida, aprisioná-lo em um sistema de
culpa e coerções perenes. A proposta de Kant é um alerta para práticas assumidas
por cada indivíduo. Vejamos como essas ideias se desenvolvem no texto.
Kant (2010) inicia sua reflexão com uma provocação
contundente: "O esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da
qual ele próprio é culpado" (Kant, 2016, p. 2). A maioridade é o que leva
o indivíduo à autonomia e à reflexão. Kant usa o exemplo de um médico que pensa
a dieta por mim: se alguém faz isso por mim, não preciso pensar, e, portanto,
não há esforço. Isso ilustra a menoridade. A passagem da menoridade para a
maioridade é exigente, pois o indivíduo deve abandonar situações que oferecem
um certo "conforto" e buscar o esclarecimento. Esse conforto é
chamado por Kant de preguiça e covardia. A preguiça e a covardia justificam a
necessidade de tutoria, pois é mais cômodo ser menor. Não exige tanto do
indivíduo, e essa falta de exigência o faz aceitar tranquilamente o estado de
tutelado, onde alguém pensa por ele.
No início do texto, Kant (2010) aponta três situações em que
é cômodo permanecer na menoridade: ao usar um livro, um diretor espiritual ou
um médico, confiando a eles o julgamento do que é melhor para si. Não é preciso
pensar; há alguém que faz isso por mim. Ao aceitar as verdades de um livro, de
um diretor espiritual ou de um médico sem esforço, o indivíduo se sujeita. Essa
condição chega ao ponto de considerar a passagem para a maioridade algo
perigoso.
A provocação de Kant (2010) diante da comodidade da
menoridade é pertinente. É tão pertinente que podemos pensar em práticas
políticas atuais a partir desse texto histórico. A ideia de uma condução da
menoridade é usada em momentos de passividade pública diante de ações
políticas. A falta de compreensão dos mecanismos de governabilidade mostra que
muitos indivíduos evitam a passagem para a maioridade. Isso pode ser observado
em conversas informais, onde é mais fácil discutir novelas e reality
shows do que projetos de lei em debate no Congresso Nacional.
O que fazer? O que pensar? Kant (2010) afirma que, para sair
da menoridade, é necessária a liberdade. Ele propõe o uso livre da razão, tanto
no âmbito público, voltado ao grande público letrado, quanto no privado,
destinado a particularidades. O uso público da razão permite transcender a
obediência cega e buscar motivações que fundamentem o agir autônomo da
maioridade. Nesse contexto, Kant critica a Igreja e as formas de governo que
impõem regras às "ovelhas", que devem seguir cegamente a vontade de
seus líderes, pois apenas estes detêm a verdadeira razão. Isso é o reflexo da
menoridade.
A maioridade é o sair desse estado e buscar uma autonomia
segura na reflexão. A submissão à não reflexão, nas palavras de Kant, constitui
"um crime contra a natureza humana" (Kant, 2016, p. 5). No entanto, o
avanço rumo ao esclarecimento pode confrontar o âmbito religioso. Tomemos o
mito da criação descrito no livro de Gênesis: o homem é punido por buscar
conhecer o bem e o mal (cf. Gênesis 3, 1-24). A condenação do criador é
uma condenação contra a natureza humana ou contra a criatura que busca avançar
em direção à maioridade racional? O mito serve para ilustrar o problema da
submissão à não reflexão, exercida por uma supertutela que adia o
esclarecimento. Para Kant (2010), o problema não está nas manifestações
religiosas, mas quando o indivíduo não age por si, deixando-se guiar por outro.
A discussão entre esclarecimento e religiosidade no texto de
Kant permite outros apontamentos. Ele sugere que não cabe a um governante ou a
um Estado determinar um princípio religioso único e oficial. É digno o
governante que permite a liberdade de crença entre seus governados. A
doutrinação político-religiosa é um caminho de selvageria e de submissão dos
indivíduos, impedindo a maioridade.
A riqueza do texto de Kant está na possibilidade de ler
fatos atuais à luz de suas ideias. Estados teocráticos, como o Irã, reprimem a
manifestação livre e autônoma da razão, justificando o uso da força pelo
Estado. A liderança político-religiosa julga-se detentora da razão e exerce uma
supertutela sobre todos os cidadãos, classificando como selvagens e perigosos
aqueles que buscam o uso público da razão.
Uma questão pertinente no texto Resposta à pergunta:
o que é esclarecimento? é aprofundada por Kant em outro
trabalho, Sobre a Pedagogia (Kant, 2012), a questão da
disciplina e da obediência na educação e como elas podem conduzir o indivíduo à
maioridade. O espaço escolar deveria ser um ambiente aberto para a construção
do conhecimento e para a manifestação pública do uso da razão.
Kant aponta a escola como o espaço adequado para a formação
da obediência e da disciplina. Em Sobre a Pedagogia, ele questiona:
"como podemos tornar os homens felizes, se não os tornamos morais e
sábios?" (Kant, 2012, p. 38). A resposta a essa pergunta está no
desenvolvimento da moralidade e da sabedoria, que são caminhos para a
maioridade. A disciplina e a obediência não são instrumentos de menoridade, mas
ferramentas que permitem ao indivíduo exercer plenamente sua liberdade. A
liberdade é fundamental para o esclarecimento.
"A disciplina
submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das
próprias leis. Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que
aprendam algo, mas para que se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a
obedecer pontualmente ao que lhes é mandado, a fim de que, no futuro, não sigam
imediatamente cada um de seus caprichos. [...] É preciso acostumá-las a
submeter-se aos preceitos da razão" (Kant, 2012, p. 13).
A disciplina e a obediência não são espontâneas; são
necessárias para que o indivíduo não permaneça à mercê da autoridade de um
tutor. O processo de educação é um processo de emancipação. Cabe à educação,
por meio da disciplina, compreender as regras que regem a vida do indivíduo,
permitindo que ele conviva harmoniosamente com base em princípios morais. O
entendimento das regras não anula a chamada à maioridade, onde o indivíduo é
convidado a pensar por si mesmo.
Para chegar ao uso da razão proposto por Kant, é importante
entender o que ele entende por educação. O objetivo desta análise não é
problematizar a educação em Kant, mas destacar a relação entre a educação,
entendida como pedagogia, e a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o
culpado, conforme o primeiro parágrafo da obra analisada. Kant afirma que
"quando o indivíduo nasce, não traz consigo o entendimento
[esclarecimento] necessário para viver em sociedade, sendo esses adquiridos por
meio da educação" (Kant, 2008, p. 15). A responsabilidade da educação é
tornar o indivíduo moral e sábio. A moralidade e a sabedoria são caminhos que
permitem ao indivíduo pensar por si mesmo. Pensar por si mesmo é pensar a
autonomia. O papel da educação é conduzir à maioridade. Que práticas no sistema
escolar brasileiro garantem essa condução?
A condução para a maioridade é a condução que, para se
tornar moral e sábio, exige que o indivíduo se liberte da animalidade e assume
a autonomia da vontade. A pergunta "O que é feito no sistema escolar
brasileiro?" deveria levar em conta o "despir-se" da animalidade
e conduzir o indivíduo à autonomia do pensar. Tomemos o exemplo do Estado de
Santa Catarina, que possui um dos melhores índices de alfabetização do mundo.
Esse índice é frequentemente usado como espelho do sucesso da educação no
estado.
Ao pensar no tempo presente, pode-se afirmar que o ser
humano ainda não vive uma época de esclarecimento, mas o esclarecimento marca
uma tentativa de superação do domínio que, durante séculos, marcou a vida dos
indivíduos. O esclarecimento virá quando o ser humano conseguir viver sem a
orientação de outrem que o domina intelectualmente. Esse domínio é chamado no
texto de tutela, e a tutela religiosa é a pior forma de dominação, por ser a
mais desonrosa.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. O que são as
Luzes? (1984). In: DITOS E ESCRITOS II: ARQUEOLOGIA DAS
CIÊNCIAS E HISTÓRIA DOS SISTEMAS DE PENSAMENTO. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. p. 335--351.
KANT, Immanuel. O que é o
esclarecimento?. In: TEXTOS SELETOS. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
2010. p. 63--71.
KANT, Immanuel. Resposta a
pergunta: o que é o iluminismo?. ∗S.l.∗∗S.l.∗:
Lusosofia, 2016. Disponível em: [inserir link]. Acesso em: 26 fev. 2025.
KANT, Immanuel. Sobre a
pedagogia. Lisboa: Edições 70, 2012. (Textos Filosóficos).
PLATÃO. A República. São
Paulo: Editora Lafonte, 2021.
Texto originalmente, escrito em
2012, revisto em 2021, e novamente revisto em 2025.
Comentários
Postar um comentário