O ano era 2015. Eu estava na metade do mestrado e viajei para meu primeiro congresso internacional dedicado ao pensador que fundamentava minha pesquisa. Já o estudava havia alguns anos. No evento, estavam reunidos os maiores leitores e comentadores de sua obra — um deleite intelectual. Além deles, guardo na memória conversas de corredor como aquela com Ailton Krenak e um bate-papo no cafezinho com um pensador australiano que discorreu sobre o tédio. Fascinavam-me os títulos das palestras: quanta criatividade!
Na última mesa do evento, ocorreu um debate acalorado entre o tradutor oficial do filósofo e o coordenador do congresso. O clima se intensificou. À medida que os argumentos eram apresentados, os corpos se transformavam. A concordância ou discordância acadêmica derivou para um caminho inesperado. Houve momentos de tensão entre os debatedores. Após as exposições, a plateia formulou perguntas incisivas, recebendo respostas áridas... O clima amistoso do evento sucumbiu diante do confronto entre dois pensadores de trajetórias opostas. Discutindo páginas e mais páginas sobre as páginas do autor tema.
Naquele instante, lembrei-me de Dance, Monkeys, Dance, de Ernest Cline: “Alguns macacos leem Nietzsche. Macacos discutem sobre Nietzsche. Sem sequer considerarem que Nietzsche era somente outro macaco”.
Os anos passaram. O evento ficou registrado no passado, mas ainda recorro aos textos publicados e continuei me dedicando a Deleuze e Guattari. Recentemente, adquiri Cartas e Outros Textos (2018), uma coletânea de correspondências de Gilles Deleuze.
Ao abrir a primeira carta, esperava reflexões filosóficas sobre as condições do cotidiano. Salvo algumas frases, não as encontrei. Eram cartas, digamos, “ordinárias”. Coisas de quem vive o dia a dia em sua intensidade: comentários sobre o trabalho universitário, observações breves sobre textos, trivialidades aqui e ali — nada explicitamente filosófico.
Diante da simplicidade daquelas linhas, questionei-me: qual a necessidade de endeusar tanto os filósofos? Por que defender posturas dogmáticas em congressos, como se teses e argumentos fossem verdades imutáveis? São ideias, são reflexões — ferramentas úteis para compreender certos objetos —, mas não são doutrinas petrificadas. Aliás, não existem verdades engessadas.
As cartas de Deleuze proporcionam um encontro com Gilles Deleuze, a pessoa. O ser humano sempre esteve presente em seus textos, mas os leitores apaixonados, cegos pelo brilho das teorias, deixaram de enxergá-lo para encontrar somente projeções de sua própria imaginação — versões distantes e simplórias daquilo que o autor realmente foi.
Que haja mais afeto nas páginas, e menos páginas sobre páginas.
OBRA CITADA:
DELEUZE, Gilles. Cartas e outros textos. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Texto escrito por Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto
Filósofo e geógrafo. Doutor em Desenvolvimento Regional.
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