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BREVE RELATO SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: A ESTRUTURA DAS MUDANÇAS DE PARADIGMA

 Este relato aborda a filosofia da ciência proposta por Thomas Samuel Kuhn, com foco na análise da estrutura das mudanças de paradigma. Antes de adentrar na teoria, é relevante apresentar alguns dados biográficos sobre o autor. Kuhn, nascido em 1922 em Cincinnati, nos Estados Unidos, e falecido em 1996 em Cambridge vítima de câncer, integra o grupo de pensadores pós-Popper que buscam fundamentar uma nova imagem da ciência. Sua obra foi influenciada pelo médico e biólogo polonês Ludwik Fleck, precursor da noção de paradigma, que na década de 1930 desenvolveu o conceito de "pensamento coletivo".

Kuhn formou-se em física pela Universidade de Harvard em 1943, obtendo o mestrado em 1946 e o doutorado em 1949. Entre suas obras mais destacadas estão A Revolução Copernicana (1959) e A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), na qual propõe uma nova abordagem da ciência, criticando a tese do falseamento de Karl Popper, apresentada em A Lógica da Pesquisa Científica (1959). Kuhn foi acusado de irracionalismo e, em resposta, publicou ensaios como Reconsiderando os Paradigmas (1974) e obras como Teoria do Corpo Negro e Descontinuidade Quântica: 1894-1912 (1979). Outros trabalhos relevantes incluem Tensão Essencial (1977) e O Caminho desde a Estrutura: Ensaios Filosóficos 1970-1993 (1995).



1. A ABORDAGEM DE KUHN

Para Kuhn, as comunidades científicas se sustentam a partir da aceitação de paradigmas. Embora o termo seja complexo e o autor utilize diversas definições em sua obra, pode-se entendê-lo, de modo didático, como um conjunto de conceitos fundamentais que orientam a prática científica (cf. FREIRE-MAIA, 1998, p. 103). Alguns estudiosos identificam até 21 definições de paradigma na obra de Kuhn, agrupadas em três categorias: metafísica, sociológica e funcional. No entanto, para compreender a ideia de paradigma, é essencial analisar a relação que Kuhn estabelece entre a prática científica e a história.

A noção de paradigma permite entender que a ciência está intrinsecamente ligada ao tempo histórico em que se insere, não podendo ser dissociada de seu contexto. Isso implica um novo papel para a história e para o historiador da ciência. Pensar os paradigmas é pensar a história da ciência, considerando o enredo histórico que envolve tanto o objeto de análise quanto a própria prática científica. Aqui, Kuhn critica a teoria cumulativa de Popper, que sugere que o conhecimento científico avança de forma linear e progressiva, descartando teorias antigas em favor de novas explicações. Para Kuhn, a análise histórica é crucial, por permitir compreender o paradigma vigente e o contexto da comunidade científica. Como afirma Sedor (2006, p. 98):

“Uma teoria científica é fruto de um processo de construção teórico-prática situado historicamente, e esse contexto do fazer-se da teoria (...) deve ser considerado ao examinarem-se as contribuições científicas.”

A passagem de um paradigma para outro constitui uma revolução científica. Essa revolução não implica o descarte completo das informações anteriores, mas um reajuste dos dados para atender às novas necessidades. Para entender esse processo, Freire-Maia (1998, p. 104) propõe cinco etapas:


  1. Ciência normal: Período de estabilidade, em que a comunidade científica segue as diretrizes de um paradigma estabelecido.

  2. Surgimento de anomalias: Fase de crise, em que contra-exemplos desafiam o paradigma vigente.

  3. Reajuste do paradigma: Tentativa de adaptar o paradigma para lidar com as anomalias.

  4. Luta pelo novo paradigma: Conflito entre defensores do paradigma antigo e proponentes do novo.

  5. Retorno à ciência normal: Consolidação do novo paradigma e estabilização da comunidade científica.


Esse ciclo descreve a estrutura das revoluções científicas, marcadas pela substituição de paradigmas em um processo que envolve ciência normal, ciência extraordinária e o retorno à ciência normal. Para Kuhn, o que está fora do paradigma vigente não é considerado ciência, mas pseudociência (cf. KUHN, 2005, p. 87). O desenvolvimento científico, portanto, não é linear, mas caracterizado por uma noção de progresso instrumental, em que novos paradigmas preservam parte da capacidade de resolver problemas conquistada pelos paradigmas anteriores (cf. KUHN, 2005, p. 214).



2. APLICAÇÃO DA ABORDAGEM DE KUHN

Para ilustrar a teoria de Kuhn, utilizarei o exemplo das teorias da evolução das espécies, baseando-me na análise de Branco (2004). O ponto de partida é a obra de Jean-Baptiste Lamarck, que propôs o transformismo (termo que preferia a "evolucionismo"). Lamarck, influenciado pelo contexto da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, defendia que as espécies evoluíam por meio do uso e desuso de órgãos, com as características adquiridas transmitidas hereditariamente. Um exemplo clássico é o alongamento do pescoço das girafas para alcançar folhas mais altas.

No entanto, o paradigma lamarckista foi desafiado por Georges Cuvier, que propôs a teoria das catástrofes, segundo a qual espécies extintas eram substituídas por outras migratórias. Essa teoria ganhou aceitação por refletir uma reação ao materialismo predominante na época (cf. BRANCO, 2004, p. 32). A crise gerada por essas anomalias preparou o terreno para a obra de Charles DarwinA Origem das Espécies (1859), que introduziu a seleção natural. Darwin argumentou que os indivíduos mais aptos sobrevivem e se reproduzem, transmitindo suas características vantajosas. Sua teoria baseava-se em quatro pontos principais:

  1. Variação entre indivíduos de uma mesma espécie.

  2. Crescimento populacional mais rápido que a disponibilidade de recursos.

  3. Luta pela sobrevivência.

  4. Sobrevivência dos mais aptos.

Embora a teoria de Darwin apresentasse falhas (como a ênfase excessiva na competição individual e a influência de Malthus sobre o crescimento populacional), ela consolidou um novo paradigma, demonstrando que a ciência avança cumulativamente, mas não linear.



3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem de Kuhn destaca a importância do contexto histórico na formação e mudança de paradigmas. Embora sua teoria seja bem estruturada, não está isenta de críticas. Um ponto relevante é o papel dos elementos externos, como eventos históricos, na promoção de mudanças paradigmáticas. Por exemplo, os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos levaram a uma reorientação da política externa americana, ilustrando como fatores externos podem influenciar paradigmas mesmo fora das ciências naturais.

Outro aspecto crucial é a ideia de progresso cumulativo. A sociedade contemporânea, marcada pelo avanço tecnológico, tende a desconsiderar contribuições históricas, o que é um erro. A mudança de paradigmas não implica o abandono completo do paradigma anterior, mas uma reavaliação e integração de conceitos. Como Kuhn afirma:

“Embora o mundo não mude com uma mudança de paradigma, depois dela o cientista trabalha em um mundo diferente.”

Em suma, a teoria de Kuhn oferece uma visão dinâmica e histórica da ciência, enfatizando que o conhecimento científico é construído em um processo contínuo de revisão e adaptação, guiado por paradigmas que refletem o contexto de sua época.


REFERÊNCIAS


BRANCO, Samuel Murgel. Evolução das espécies: o momento científico, religioso e filosófico. 2. Ed. reform. São Paulo: Moderna, 2004.

FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro. 5. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

KUHN. Thomas Samuel. As estruturas das revoluções científicas. 9. Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.

REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. Volume 3. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.

SEDOR, Gígi Anne Horbatiuk. Thomas S. Kuhn: explorando o mundo científico. Florianópolis: Edição do autor, 2006.


Texto escrito por Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto
Filósofo e geógrafo. Doutor em Desenvolvimento Regional. 



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