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PAIS E FILHOS: CARTAS DO MUNDO LÍQUIDO

 "Na sociedade sólida moderna, de produtores e soldados, o papel dos pais consistia em incutir nos filhos, a todo custo, a autodisciplina" (Bauman, 2011, p. 49)

Tenho medo de voar. Entrar no avião e passar as horas necessárias até o destino me é sufocante. Diante da necessidade e da prática, o faço, mas evito quando posso. Em uma dessas ocasiões, fui acompanhado pelas 44 cartas do mundo líquido moderno, de Zygmunt Bauman. Não escolhi o polonês para me acalmar, pois ele desperta o desejo contrário. Escolhi a obra porque o livro foi um presente de Dia dos Professores de uma pessoa muito amada. Ao estar com o livro, estava com ela na viagem. Enquanto Bauman refletia sobre as intempéries da contemporaneidade, eu me segurava nas páginas de uma doce lembrança.

O livro, como sugerido no título, é composto por cartas escritas por Bauman durante dois anos (2008 e 2009) para leitores italianos. Uma das cartas, intitulada “Pais e Filhos”, chama a atenção. Nela, o autor recupera Michel Foucault e mostra uma passagem de costumes, a partir da moralidade imposta sobre o sexo, para demonstrar que a sociedade ocidental se utiliza do medo como pressuposto educativo.

Num primeiro momento, nos séculos XVIII e XIX, cabia aos pais a eterna vigilância sobre crianças e adolescentes para evitar ações de prazer que levassem ao pecado. A vigilância perene contra o medo do pecado — e, geralmente, o pecado adentrava a casa pela masturbação. A segunda fase da Revolução Industrial trouxe outro tipo de medo: educa-se pelo medo a fim de evitar que o jovem se torne vítima de abusos sexuais, os quais ocorrem na intimidade do lar. Cabe ao Estado produzir o cuidado disciplinar, por meio do regramento jurídico, para combater uma nova forma de medo. A terceira transformação, aquela do tempo atual, mencionada nas entrelinhas das cartas, é o medo de se distanciar do consumo. “Os mercados se propõem a reprimir qualquer remanescente de escrúpulo moral e atenta e cuidada da família [...] para comprar uma solução para a preocupação” (Bauman, 2011, p. 52).

O texto versa sobre o poder parental e como este é representativo dos dispositivos de poder que atuam sobre cada um e cada uma de nós. Atualmente, o controle parental é dividido com outras instituições, como a escola, por exemplo. Ampliam-se as instituições de educação em tempo integral, que atuam sobre corpos infantes segundo a lógica do capital na educação. Além destas, há o controle virtual, por meio dos mecanismos de vigilância. A ideia de medo permanece: a educação como superação do medo do insucesso — já que ela, em tese, deveria preparar os jovens para o ingresso no mercado —, e o medo dos vícios originados no acesso virtual. O controle como resposta a uma prática que continua a mesma: a educação pelo terror.

Então, como pensar a liberdade humana quando as decisões são pautadas na lógica do medo?




Texto escrito por Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto (0000-0001-8631-5270). Filósofo e geógrafo. Doutor em Desenvolvimento Regional.

Obra citada:

BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011 (págs. 48/52).

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