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PAIS E FILHOS: CARTAS DO MUNDO LÍQUIDO

 "Na sociedade sólida moderna, de produtores e soldados, o papel dos pais consistia em incutir nos filhos, a todo custo, a autodisciplina" (Bauman, 2011, p. 49) Tenho medo de voar. Entrar no avião e passar as horas necessárias até o destino me é sufocante. Diante da necessidade e da prática, o faço, mas evito quando posso. Em uma dessas ocasiões, fui acompanhado pelas 44 cartas do mundo líquido moderno , de Zygmunt Bauman. Não escolhi o polonês para me acalmar, pois ele desperta o desejo contrário. Escolhi a obra porque o livro foi um presente de Dia dos Professores de uma pessoa muito amada. Ao estar com o livro, estava com ela na viagem. Enquanto Bauman refletia sobre as intempéries da contemporaneidade, eu me segurava nas páginas de uma doce lembrança. O livro, como sugerido no título, é composto por cartas escritas por Bauman durante dois anos (2008 e 2009) para leitores italianos. Uma das cartas, intitulada “Pais e Filhos”, chama a atenção. Nela, o autor recupera Michel...
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ZAQUEU E A CONVERSÃO: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA E CATEQUÉTICA DE LUCAS 19,1-10

Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto ( 0000-0001-8631-5270 )   O relato de Zaqueu (Lc 19,1-10) insere-se no Evangelho de São Lucas a partir da perspectiva da misericórdia divina, destacando-se na radicalidade da conversão. O texto apresenta um cobrador de impostos, figura marginalizada no judaísmo sob domínio do Império Romano, como protagonista de uma transformação existencial. Além disto, o cobrador de impostos está aquém da vida religiosa (cf. Ravens, 1991) . A narrativa demonstra que a salvação não se restringe a categorias morais ou sociais, mas emerge do encontro pessoal com Cristo. O texto narra um encontro, uma relação de afetividade que desvela um acontecimento, uma relação entre dois mundos distintos e improváveis (cf. Deleuze, 2003) . O acontecimento não é só o encontro físico, mas é a linguagem que leva uma conversão e a uma mudança. Para provocar o acontecimento, Zaqueu sobe ao sicômoro [figueira] (Lc 19, 4) não por acaso, mas devido a sua baixa estatura física, q...

O DOMINGO DE RAMOS FOI UM PROTESTO, NÃO UMA PROCISSÃO

  Andrew Thayer [1]   Os cristãos abrem a Semana Santa celebrando o Domingo de Ramos, quando Jesus entrou em Jerusalém pela última vez antes da Paixão, Morte e Ressurreição. Para marcar o dia, recriam a cena da entrada de Jesus em Jerusalém (Marcos 11,1-11), que muitas vezes começa do lado de fora das igrejas e percorre as calçadas e ruas da cidade acenando com ramos de palmeira. “Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor” (Marcos 11,9).  Celebrações como essa muitas vezes ignoram uma condição histórica desconfortável sobre a entrada de Jesus em Jerusalém. Na época, foi um ato deliberado de confronto teológico e político, foi um protesto. No mesmo dia da entrada de Jesus, houve uma grande procissão entrando em Jerusalém. Do oeste veio Pôncio Pilatos, o governador romano, montado em um cavalo de guerra e ladeado por soldados armados vestidos com todo o esplendor próprio da imponência de um imperador romano. Todos os anos, durante a Páscoa (Êxodo 12, 43-51), um fe...

A INVASÃO DA UCRÂNIA PELA RÚSSIA: NO CAPITALISMO NÃO HÁ DICOTOMIAS IDEOLÓGICAS

  Imagem gerada por A.I. Utilizou o título como prompt Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto 0000-0001-8631-5270   Este ensaio propõe uma reflexão sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, desde 2022 e suas implicações para a ordem global, evitando as habituais polarizações entre esquerda e direita. O argumento central é que, no capitalismo contemporâneo, a lógica da competitividade subordina até mesmo os discursos políticos, transformando-os em instrumentos de obediência à racionalidade do lucro ( cf. Berardi, 2025). Logo não há direito e nem esquerda, apenas forças neoliberais e forças de resistência. Essa dinâmica aproxima-se do conceito de  Império , desenvolvido pelo filósofo italiano Antonio Negri (2003), que descreve uma forma de poder descentralizado, mas totalizante, capaz de cooptar até mesmo as resistências. A política para Negri (2003) é um embate de forças. No tempo presente a força motriz é o capitalismo. Ele que rege os ideais econômicos, os valores da educaçã...

BREVE RELATO SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: A ESTRUTURA DAS MUDANÇAS DE PARADIGMA

  Este relato aborda a filosofia da ciência proposta por   Thomas Samuel Kuhn , com foco na análise da estrutura das mudanças de paradigma. Antes de adentrar na teoria, é relevante apresentar alguns dados biográficos sobre o autor. Kuhn, nascido em 1922 em Cincinnati, nos Estados Unidos, e falecido em 1996 em Cambridge vítima de câncer, integra o grupo de pensadores pós-Popper que buscam fundamentar uma nova imagem da ciência. Sua obra foi influenciada pelo médico e biólogo polonês   Ludwik Fleck , precursor da noção de paradigma, que na década de 1930 desenvolveu o conceito de "pensamento coletivo". Kuhn formou-se em física pela Universidade de Harvard em 1943, obtendo o mestrado em 1946 e o doutorado em 1949. Entre suas obras mais destacadas estão  A Revolução Copernicana  (1959) e  A Estrutura das Revoluções Científicas  (1962), na qual propõe uma nova abordagem da ciência, criticando a tese do falseamento de Karl Popper, apresentada em  A Lógi...

TENSÕES ENTRE DEMOCRACIA E RELIGIÃO: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE JÜRGEN HABERMAS

  O objetivo deste estudo é compreender e analisar a relação entre naturalismo e religião na obra  Entre Naturalismo e Religião , do filósofo alemão Jürgen Habermas. A obra investiga os tipos de relações e conflitos existentes entre cosmovisões naturalistas e ortodoxias religiosas, bem como as implicações políticas decorrentes desses embates. O poder é tratado como soberania, entendido como a capacidade de legitimar normas e justificar o exercício do poder político por meio da participação popular em um regime democrático. No entanto, essa concepção de poder entra em conflito com certos princípios religiosos, que impõem aos crentes um peso moral e um sofrimento maior ao seguirem normas que, para os não crentes, podem parecer menos exigentes. Até que ponto um crente pode tolerar, na esfera pública, manifestações normativas que contradizem seus preceitos de fé? E, na ausência de tolerância, como o Estado de direito, legitimado pelo povo, deve agir para garantir o bem comum a t...

COMENTÁRIOS SOBRE EMANCIPAÇÃO A PARTIR DO TEXTO O QUE É ESCLARECIMENTO, DE IMANUEL KANT

  Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto https://orcid.org/0000-0001-8631-5270 Pretendo, neste texto, apresentar uma análise da obra  Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? , de Immanuel Kant (2010), publicada originalmente em 5 de dezembro de 1783. O texto é uma tradução do original em alemão  Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? . Entre os tradutores, há divergências: alguns utilizam o termo "esclarecimento", enquanto outros optam por "iluminismo", "ilustração" ou até "filosofia das luzes". Floriano de Souza Fernandez defende que "esclarecimento" é o termo mais adequado, pois acentua o aspecto essencial da expressão  Aufklärung  ( cf. Kant, 2010, p. 100). O termo  Aufklärung  refere-se a um processo de emancipação, no qual alguém tutelado busca transcender o estado de menoridade para alcançar a maioridade. Ao longo do texto, optarei por "esclarecimento", pois a  Aufklärung  não se restringe a uma época específ...