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ZAQUEU E A CONVERSÃO: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA E CATEQUÉTICA DE LUCAS 19,1-10


Prof. Dr. Albio Fabian Melchioretto (0000-0001-8631-5270)

 

O relato de Zaqueu (Lc 19,1-10) insere-se no Evangelho de São Lucas a partir da perspectiva da misericórdia divina, destacando-se na radicalidade da conversão. O texto apresenta um cobrador de impostos, figura marginalizada no judaísmo sob domínio do Império Romano, como protagonista de uma transformação existencial. Além disto, o cobrador de impostos está aquém da vida religiosa (cf. Ravens, 1991). A narrativa demonstra que a salvação não se restringe a categorias morais ou sociais, mas emerge do encontro pessoal com Cristo.

O texto narra um encontro, uma relação de afetividade que desvela um acontecimento, uma relação entre dois mundos distintos e improváveis (cf. Deleuze, 2003). O acontecimento não é só o encontro físico, mas é a linguagem que leva uma conversão e a uma mudança. Para provocar o acontecimento, Zaqueu sobe ao sicômoro [figueira] (Lc 19, 4) não por acaso, mas devido a sua baixa estatura física, que metaforiza sua pequenez espiritual. A árvore, aqui, representa o esforço humano para transcender limitações e alcançar a visão de Jesus. Na tradição bíblica, árvores são lugares da manifestação de Deus, veja, por exemplo, Moisés no encontro com Deus na sarça ardente (Ex 3, 1-6).

Jesus não somente vê Zaqueu, mas o chama pelo nome (Lc 19,5), rompendo a barreira da multidão. O chamado é individualizado (Jr 1,5). Esse detalhe ressalta a vocação e o chamado. Para além do chamado, há de se considerar que na cultura judaica, compartilhar uma refeição com um pecador público (Lc 19,7) era escandaloso, mas Jesus redefine os critérios de pureza. O chamado prevê a conversão e não a condenação pública. O chamado a conversão se deu na intimidade do lar, pois o encontro é no interior, na vida (Palaoro, 2022).

Ao entrar na casa de Zaqueu (Lc 19,6), Jesus santifica o espaço doméstico, tema caro a Lucas como o encontro com Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42). A catequese, nessa perspectiva, deve ser “casa que acolhe” (CNBB, 2019) onde se experimenta a hospitalidade divina. A casa é o lugar e nela Jesus proclama, "hoje veio a salvação a esta casa" (Lc 19,9), enfatizando o hoje escatológico. É o tempo da salvação que acontece diante do chamado e da conversão, tanto do indivíduo quanto da sua comunidade (CNBB, 2014).  A salvação não é individualista, mas atinge a rede de relações de Zaqueu. Na Igreja primitiva, como se percebe em Atos 16,31, a conversão do carcereiro de Filipos incluiu sua família, ecoando essa dimensão comunitária. Zaqueu estava sozinho na árvore (Lc 19,3), e lá ele não pode permanecer, por dois motivos, a árvore em si, e o chamado de Jesus, “desce depressa”, Zaqueu vai para o interior da casa, onde formou comunidade (Couto, 2021).

A resposta de Zaqueu (Lc 19,8) não se limita a arrependimento verbal, mas implica reparação material, devolver quatro vezes o roubado excede a Lei mosaica (cf. Ex 22,1). Antes da pena, a restituição como compromisso moral. Esse gesto ilustra que a conversão autêntica altera relações socioeconômicas.
A restituição era prática esperada na catequese primitiva, vinculando fé e justiça social (cf.  Ef 4,25-31). A restituição não é uma justa medida, ou a retomada do “olho por olho, dente por dente”, mas ela avança sobre uma perspectiva de justiça social, “tenha alguma coisa para dar aos mais necessitados” (Ef 4,28).

A murmuração da multidão (Lc 19,7) reflete uma religiosidade que privilegia normas sobre pessoas. Jesus, porém, desloca o foco para a dignidade do indivíduo, antecipando por São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 3,28). Na catequese contemporânea, esse episódio questiona se as comunidades priorizam acolhida ou julgamento. O legalismo pode obscurecer o anúncio da salvação gratuita.

O encontro de Jesus com Zaqueu desafia os catequistas a uma proposição de encontro, e não de murmúrio (Lc 19,7). O desafio está na aceitação da alegria e no chamado apresentado por Jesus. Para Revens (1991), Zaqueu é acusado pelas pessoas por conta do exercício de cobrança de impostos, mas Jesus não centrou pecado, da mesma forma como com a mulher acometida em adultério (Jo 8,3-11). Jesus apresentou o encontro misericordioso, “ele é o filho de Abraão” (Lc 19,9). A salvação irrompe onde há abertura ao encontro.



Referências

CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. A conversão pastoral da paróquia. Documentos da CNBB, n. 100. Brasília: Edições da CNBB, 2014.

CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2019-2023. Brasília: Edições da CNBB, 2019.

COUTO, Vítor José da Silva. Zaqueu: da hospitalidade à salvação - uma leitura exegético-teológica. 2021. 98 f. Tese - Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Teologia, Braga, 2021. Disponível em: https://www.proquest.com/openview/28a2fd142df001d4eb928fa52eeeb6d0/1?cbl=2026366&diss=y&pq-origsite=gscholar. Acesso em: 12 maio 2025.

DELEUZE, Gilles. Logica do sentido. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. (Estudos).

PALAORO, Adroaldo. Zaqueu, “o homem que transitava pelos galhos”. IHU Unissinos, 2022. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/42-comentario-do-evangelho/623311-zaqueu-o-homem-que-transitava-pelos-galhos. Acesso em: 12 maio 2025.

RAVENS, David A.S. Zacchaeus: the Final Part of a Lucan Triptych? Journal for the Study of the New Testament, Arthursdale Grange, Leeds, v. 13, n. 41, p. 19–32, 1991.

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